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Brasil: no caminho da sustentabilidade e da igualdade na saúde

 19/05/2011

Comentário

Brasil: no caminho da sustentabilidade e da igualdade na saúde

Com a posse de um novo governo desde janeiro e com uma mulher, Dilma Rousseff, no comando, juntamente com um crescimento econômico de 7,5% no ano passado e um novo campo petrolífero descoberto em alto mar, o Brasil é um país atualmente muito procurado como parceiro político e econômico. Hoje em dia, o Brasil tem uma oportunidade importante e singular para consolidar seus formidáveis avanços na saúde em direção à sua meta última, de um serviço de saúde universal, justo e sustentável, que atenda ao direito à saúde indelevelmente garantido em sua Constituição de 1988. Para destacar essa oportunidade, The Lancet está publicando uma série de seis artigos que examinam criticamente as realizações das políticas do país e que tentam definir em que lugar podem situar-se os futuros desafios.

1. O desenvolvimento histórico do atual sistema de saúde tem diversas características singulares. Jairnilson Paim et al , iniciam a série, destacando que a recente história política do Brasil, com uma ditadura militar até 1985, criou as condições para um forte movimento da sociedade civil, ainda hoje florescente. Esse movimento constituiu um impulso poderoso para a reforma da saúde, que, em última análise, resultou no Sistema Unificado da Saúde (SUS). Essas reformas definiram a saúde para além de suas conotações biomédicas. Elas incluíram determinantes sociais da saúde, educação, redução da pobreza e medidas preventivas no contexto mais amplo da saúde como um direito humano. Uma característica essencial do SUS é a promoção da participação da comunidade em todos os níveis administrativos.

2 . Voltando um pouco mais no tempo, a saúde pública tem grande tradição no Brasil. No final do século XIX, foi criada a Diretoria Geral de Saúde Pública. Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, dois dos maiores líderes científicos do Brasil, não só atuaram decisivamente contra as ameaças à saúde pública na época, como a peste bubônica, a febre amarela e a varíola, mas também lançaram as fundações da internacionalmente conhecida Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), que atualmente emprega mais de 7.500 pessoas em todo o país.Desde o início, a saúde pública esteve mergulhada na esfera política e social e a FIOCRUZ era, e permanece sendo até hoje, um lugar onde a educação, a pesquisa, a produção de medicamentos e vacinas e a defesa da saúde andam de mãos dadas. É lamentável observar que atualmente esse posicionamento da saúde em geral – e da saúde pública em particular – no centro da política e da sociedade vem diminuindo em muitos países.

O Brasil adotou uma posição globalmente mais assertiva e é fácil compreender essa atitude. De acordo com o seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, o país superou a Grã-Bretanha e a França, vindo a se tornar a quinta maior economia no mundo (anteriormente estava na oitava posição).

3. O Brasil sediará a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016. No entanto, Dilma Rousseff fez da luta contra a pobreza um tema central da sua presidência. Recentemente, a Presidente reafirmou o compromisso de seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, de erradicar a pobreza no país.

4. De sua posição como um dos países mais desiguais no mundo em 1989, muitas conquistas foram alcançadas durante as últimas duas décadas. O SUS melhorou enormemente o acesso aos cuidados de saúde primários e de emergência. O Brasil já concretizou um dos objetivos da primeira Meta de Desenvolvimento do Milênio (MDM) – a redução, pela metade, no número de crianças subnutridas – e o país está a caminho de cumprir a MDM 4 (uma redução de dois terços na taxa de mortalidade de crianças menores de 5 anos). As políticas e realizações do Brasil para o HIV/AIDS têm sido amplamente elogiadas. Grandes progressos têm sido feitos na redução das desigualdades regionais e socioeconômicas e da pobreza.

5 Há muito ainda a ser feito. A complexa mistura das carências na saúde pública e privada exige urgentemente atenção. O Brasil tem a maior taxa de cesarianas no mundo, muitas intervenções de alta tecnologia são feitas pelas razões erradas, a obesidade está aumentando em ritmo alarmante e o consumo do álcool e a violência são inaceitavelmente altos, com consequências de grande alcance. 6,7

O que se faz necessário agora é uma vontade política permanente de enfrentar questões difíceis e de tomar as decisões corretas com base nas prioridades mais importantes do país. Como Cesar Victora et al.8 concluem no artigo final dessa série: “Em última análise o desafio é político, exigindo um engajamento contínuo da sociedade brasileira como um todo, para que seja assegurado o direito à saúde para todos os brasileiros”. O Brasil está em um processo de transição, mas se encontra em excelente posição, graças ao seu histórico compromisso com a saúde pública e à sua atual robustez política e econômica, para realizar suas ambiciosas aspirações.

Uma forte ênfase na saúde como um direito político, juntamente com um alto nível de engajamento da sociedade civil nessa busca, também pode significar que outros países podem olhar para o Brasil em busca de inspiração (e de provas) para que os seus próprios dilemas da saúde sejam resolvidos. O Brasil é um país complexo – “não é um país para principiantes”, coforme disse, com muita propriedade, Tom Jobim, o popular maestro e compositor brasilieiro –, mas esperamos que essa série realmente mostre porque o Brasil não só deve ser levado mais a sério pelas comunidades internacionais científicas e da saúde, como também deve ser admirado pela implementação de reformas que posicionaram a igualdade no acesso à saúde no centro da política nacional – uma conquista que muitos podem desejar para seus próprios países.

 

Sabine Kleinert, Richard Horton

1 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian healthsystem: history, advances, and challenges.

2 FIOCRUZ. Getting to know Fiocruz. http://www.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/ sys/start.htm?UserActiveTemplate=template%5Fingles&sid=185(acesso em 6 de março de 2011).

3 Leahy J. Brazil claims it is fifth largest economy in world.

4 Rousseff D. Address of President Dilma Rousseff: inaugural speech to the Brazilian public. Jan 1, 2011. http://www.brasil.gov.br/news/history/2011/ 01/03/address-of-president-dilma-rousseff-inaugural-speech-tothebrazilian-public/newsitem_view?set_language=en (acesso em 6 de março de 2011).

5 World Bank. Brazil country brief. Oct 4, 2010. http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/COUNTRIES/LACEXT/BRAZILEXTN/0,,menuPK:322351 ~pagePK:141132~piPK:141107~theSitePK:322341,00.html (acesso em 6 de março de 2011).

6 Zitko-Melo P, Franco-Marina F, Rodríguez-García J, et al. Comparative risk factor assessment for 11 Latin American countries. Global Health Metrics & Evaluation: Controversies, Innovation, Accountability; March 14—16, 2011; Seattle, WA, USA (abstr).

7 Tiene de Carvalho Yokota R, de Moura L, Medeiros Mascarenhas MD, et al. Evaluation of the Brazilian national violence surveillance system, 2006–09. Global Health Metrics &Evaluation: Controversies, Innovation, Accountability; March 14—16, 2011; Seattle, WA, USA (abstr).

8 Victora CG, Barreto ML, do Carmo Leal M, et al. Health conditions and health-policy innovations in Brazil: the way forward.

Lancet 2011; publicado online em 9 de maio. DOI:10.1016/S0140-6736(11)60054-8. Financial Times March 3, 2011. http://www.ft.com/cms/s/0/89ad55ba-45d7-11e0-acd8 -00144feab49a.html#ixzz1HFE3E6sB (acesso em 6 de março de 2011). Lancet 2011; London NW1 7BY, UKThe Lancet

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Comentário  4

Publicado DOI:10.1016/S0140- 6736(11)60318-8

Reforma dos serviços de saúde no Brasil: movimentos sociais e sociedade civil

 

1 cerca de uma década antes do acréscimo dos serviços de saúde à Constituição Brasileira de 1988, como um direito do cidadão.2

A reforma foi posteriormente institucionalizada na década de 1990, com a formação de um sistema nacional de saúde denominado Sistema Único de Saúde, o SUS.

Originalmente, a luta por um modelo novo e abrangente de proteção social tinha um componente de mobilização social em favor da ampliação dos direitos sociais, como parte da transição para um regime democrático. A singularidade de um projeto de política social concebido por movimentos sociais e a forte associação desse projeto com a transformação do Estado e da sociedade em uma democracia acrescentaram algumas características importantes ao sistema brasileiro de seguridade social, incluindo pensões, saúde e assistência social. O novo modelo constitucional de política social se caracteriza pela universalidade da cobertura, reconhecimento dos direitos sociais, afirmação dos deveres do Estado, subordinação das práticas privadas aos regulamentos com base na relevância pública das ações e serviços nessas áreas, com uma abordagem orientada para o público (em vez de uma abordagem de mercado) de cogestão pelo Governo e pela sociedade, com uma estrutura descentralizada.

Figura:

 

DF=Distrito Federal.

Sistema Único de Saúde: estrutura de processos e de tomada de decisão para formação de políticas no Brasil

Níveis de governo

Construção de consenso e instrumentos gerenciais

Autoridade da Saúde

Funções Processo de descentralização

Mecanismo  de controle social

Conselheiros: 50% do governo, 50% da sociedade

Mecanismo  de formulação de políticas

Federal (eleito)

Ministro

Secretários dos estados

Secretários municipais

Recursos humanos, centros de serviços de saúde e recursos financeiros dos hospitais

Níveis de autonomia

A— Gerenciamento do sistema de saúde local

B— Gerenciamento do programa de saúde primária

Fundo estadual

Coordenação de sistemas regionais

Serviços de referência

Conselho nacional de saúde

Conferência nacional de saúde

Conselho estadual de saúde

Conferência estadual de saúde

Conselho  municipal de saúde

Conferência municipal de saúde

Fundos municipais

Coordenação de sistemas municipais

Gerenciamento da rede de atendimento

Estados (eleitos) 26+1 DF

Consórcio

Comissão bipartite

Comissão tripartite

Fundo central

Políticas e programas nacionais

Programas-alvo

Municipalidades  (eleitas) 5907

Oswaldo Cruz Foundation, FIOCRUZ Center for Global Health,

Rio de Janeiro 21040-360, Brazil

buss@fiocruz.br

Declaro não ter conflitos de interesse.

1 PAHO. Pro salute novi mundi: a history of the Pan American Health Organization. Washington, DC: Pan American Health Organization, 1992: 296.

2 World Trade Organization. Declaration on the TRIPS agreement and public health. Nov 14, 2001. http://www.wto.org/english/thewto_e/minist_e/min01_e/mindecl_trips_e.htm (acesso em 22 de março de 2011).

3 FCTC. WHO Framework Convention on Tobacco Control. http://www.who. int/fctc/en (acesso em 22 de março de 2011).

4 Ministério da Saúde, Brazil. FIOCRUZ. http://www.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=template%5Fingles&tpl=home (acesso em 22 de março de 2011).

5 Health Council of the Union of South American Nations. http://www.pptunasur.com/contenidos.php?menu=3&submenu1=7&idiom=1 (acesso em 22 de março de 2011).

6 2010–15 Quinquennial Plan. http://www.unasursalud.org/images/stories/ documentos/plan_quinquenal_ingles.pdf (acesso em 22 de março de 2011).

7 Buss PM, Ferreira JR. Health diplomacy and South-South cooperation: the experiences of UNASUR Salud and CPLP’s strategic plan for cooperation in health. RECIIS Rev Electron Comun Inf Inov Saude 2010; publicado online em março. http://www.revista.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/351/520 (acesso em 22 de março de 2011 ).

8 CPLP. Strategic plan for cooperation in health. http://www.cplp.org/ id-1787.aspx (acesso em 22 de março de 2011) (em Português).

9 Almeida C, Pires de Campos R, Buss PM, Ferreira JR, Fonseca LE. Brazil’sconception of South-South “structural cooperation” in health.RECIIS Rev Electron Comun Inf Inov Saude 2010; publicado online em março. http://www.revista.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/343/528 (acesso em 22 de março de 2011).

10 Buss PM, Ferreira JR. Critical essay on international cooperation in health. RECIIS Rev Electron Comun Inf Inov Saude 2010; publicado online em março. http://www.revista.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/350/517 (acesso em 22 de março de 2011).

11 OECD. Paris Declaration and Accra Agenda for Action. http://www.oecd. org/document/18/0,3343,en_2649_3236398_35401554_1_1_1_1,00. htm (acesso em 22 de março de 2011).

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Comentário  5

www.thelancet.com

Os dois mecanismos de participação (incluindo as autoridades de saúde e a população) são os conselhos e as conferências. Os conselhos existem em todos os níveis do sistema e são mecanismos de controle social e aprovação do orçamento que avaliam as propostas executivas e o desempenho. As conferências são convocadas periodicamente para discutir assuntos variados e para transmitir os diferentes interesses para uma plataforma/formulação de políticas comum.

Embora muitos especialistas tenham se questionado se os conselhos têm a capacidade de controlar o governo, não se chegou a uma conclusão definitiva, devido à grande diversidade na capacidade política da sociedade civil no Brasil e também à distribuição desigual de recursos entre seus residentes.

Uma característica importante da seguridade social no Brasil se situa no componente de uma vigorosa reforma do Estado, no redesenho das relações entre as entidades federadas e participantes institucionalizados e do controle social por mecanismos de negociação e consenso, envolvendo os governos municipais, estaduais e federal. O federalismo remodelado assume a responsabilidade maior na transferência das políticas sociais para as autoridades locais. Os sistemas de proteção social têm adotado o formato de uma rede integrada e descentralizada, com um comando político e financeiro em cada nível de governo e com as instâncias deliberativas da democracia que garantem a igualdade de participação da sociedade organizada no âmbito destes níveis (Figura).

6 Apesar deste sucesso – e considerando que a principal característica da sociedade brasileira é a distribuição desigual do poder e dos recursos –, o desafio também está presente nos objetivos da saúde, quer pela ausência de pressão em favor da inclusão de doenças negligenciadas nas prioridades governamentais, quer pela apropriação de mecanismos participativos por grupos mais organizados. 7Embora esses componentes pertençam ao mesmo processo de reforma, suas diferentes trajetórias e seus movimentos em ritmos diferentes levam a um ciclo interminável de tensões e desafios.

Os três componentes da reforma da saúde foram identificados como: a constituição do corpo político; a formação de um quadro jurídico; e a competência na gestão da saúde, ou  institutionalização.

 

3–5 A participação social é considerada um componente importante dos programas de saúde sustentáveis. Hoje em dia, o Brasil é reconhecido como um modelo para a redução da epidemia do HIV graças à sua política de acesso universal ao tratamento gratuito com medicamentos antirretrovirais.6 Esta bem-sucedida política de prevenção tem-se baseado na mobilização do público e de organizações não governamentais, sendo ainda apoiada por organismos internacionais. Esse padrão de associação cooperativa é considerado fundamental para a realização das metas do programa. Embora as reformas dos serviços de saúde dependam de um intenso apoio social para que sejam bem-sucedidas, a reforma no Brasil é peculiar, por ter sido projetada completamente por militantes do chamado Movimento Sanitário

Online 9 de maio de 2011
www.thelancet.com

 

Sonia.fleury@fgv.br

Sonia Fleury

Getulio Vargas Foundation, Brazilian School of Public Administration and Business, Rio de Janeiro, RJ 22250-900, Brazil

Declaro não ter conflitos de interesse.99: 1–8. 14: 743–52.

1 Paim JS. Brazilian sanitary reform: contribution for a critical approach. September, 2007. http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=576 (acesso em 14 de março de 2011)(em Português).

2 de Carvalho AI, de ST Santos CA, Gadelha CAG, et al. The democratic issue in health. In: Fleury S, eds. Health and democracy —the CEBES struggle. 1997:25–44. http://www.cebes.org.br/media/file/saude%20e%20 democracia%20a%20luta%20do%20cebes.pdf (acesso em 14 de março de 2011).

3 Avritzer L. Association and participation in health sector: an analysis of this issue in the Brazilian northeast region. In: Fleury S,de Vasconcelos Costa Lobato L, eds. Participation, democracy, and health. 2009: 151–74.http://www.cebes.org.br/media/File/livro_particioacao.pdf (acesso em 14 de março de 2011) (em Português).

4 Cortes S. Health councils and conference: institutional roles and changes in state and society relationships. In: Fleury S, de Vasconcelos Costa Lobato L, eds. Participation, democracy, and health. 2009: 102–28.http://www.cebes.org.br/media/File/livro_particioacao.pdf (acesso em 14 de março de 2011) (em Português).

5 Fedozzi L. Participatory democracy, fights for equity and inequal participation. In: Fleury S, de Vasconcelos Costa Lobato L, eds. Participation, democracy, and health. 2009: 204–28. http://www.cebes. org.br/media/File/livro_particioacao.pdf (acesso em 14 de março de 2011) (em português).

6 Le Loup G, de Assis A, Costa-Couto MH, et al. A public policy approach to local models of HIV/AIDS control in Brazil. Am J Public Health 2009. 

7 Fleury S. Brazilian sanitary reform: dilemmas between the instituting and the institutionalized. Cien Saude Colet 2009; 

Veja

 

DOI:10.1016/S0140- 6736(11)60054-8,

DOI:10.1016/S0140- 6736(11)60138-4,

DOI:10.1016/S0140- 6736(11)60202-X,

DOI:10.1016/S0140- 6736(11)60135-9,

DOI:10.1016/S0140- 6736(11)60053-6 e

DOI:10.1016/S0140- 6736(11)60055-X

Online/Série

A utilização dos movimentos sociais na luta por posições na hierarquia governamental no setor da saúde no estado tem duas consequências. Essa atitude força a transformação das estruturas administrativas, com vistas à ampliação do papel da sociedade no processo decisório, mas também permite que os líderes da sociedade civil fiquem engajados na elaboração dos projetos e na execução de políticas públicas; com isso, perdem as suas ligações com a base social original.

 

 

 


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