Cem anos após publicação, relatório Flexner continua atual ">...">
20/05/2010
Sobre o relatório Flexner
Em 1910, foi publicado o estudo Medical Education in the United States and Canada - A Report to the Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, que ficou conhecido como o Relatório Flexner (Flexner Report). O Relatório Flexner é considerado o grande responsável pela mais importante reforma das escolas médicas de todos os tempos nos Estados Unidos da América (EUA), com profundas implicações para a formação médica e a medicina mundial. Flexner considerava a maioria das escolas médicas dos EUA e Canadá desnecessária ou inadequada. Ele fez planos e mapas pormenorizados, onde estabelecia o número, a alocação e a distribuição das escolas de medicina no Canadá e nos EUA. Em sua opinião, das 155 escolas existentes, apenas 31 tinham condições de continuar funcionando.
Nos 12 anos posteriores à publicação do Relatório, o número de escolas de medicina nos Estados Unidos caiu de 131 para 81. O número de escolas médicas homeopáticas diminuiu de 20 para 4 entre 1910 e 1920. Muitas se converteram ao modelo biomédico. A última escola de fisiomedicalismo foi fechada em 1911. Cinco das sete escolas para negros foram fechadas. A escola médica se elitizou e passou a ser frequentada pela classe média alta.
A produção do trabalho de Flexner permitiu reorganizar e regulamentar o funcionamento das escolas médicas, mas desencadeou um processo terrível de extirpação de todas as propostas de atenção em saúde que não professassem o modelo proposto. Mas teve como grande mérito a busca da excelência na preparação dos futuros médicos, introduzindo uma salutar racionalidade científica, para o contexto da época. Mas, ao focar toda a sua atenção neste aspecto, desconsiderou outros fatores que afetam profundamente os impactos da educação médica na prática profissional e na organização dos serviços de saúde. Ele assume, implicitamente, que a boa educação médica determina tanto a qualidade da prática médica como a distribuição da força de trabalho, o desempenho dos serviços de saúde e, eventualmente, o estado de saúde das pessoas.
Esta visão ainda pode ser facilmente encontrada hoje. As necessidades de saúde são tomadas como o ponto de chegada e não como ponto de partida da educação médica. Mais além da situação específica dos EUA, a educação médica vinha sofrendo transformações importantes a partir da segunda metade do século XIX em todo o mundo. O modelo francês, que se irradiou com grande força de Paris para o mundo a partir de 1830, vinha sofrendo a influência do modelo de medicina e educação alemão. No modelo anatomoclínico francês, os estudantes aprendiam ao lado do leito do paciente e, nos anfiteatros anatômicos do hospital, treinavam as técnicas diagnósticas e terapêuticas e faziam pesquisas clínicas na faculdade de Medicina. Já o modelo de pesquisa médica alemã estava centrado no laboratório, na hierarquia, na especialização e nas pesquisas experimentais.
Quando Flexner assumiu um cargo permanente no General Education Board, em 1912, subvencionado por Rockfeller, amplou significativamente sua influência e controle sobre as instituições de ensino norte-americanas. Apoiado nos fundos da Rockfeller Foundation e mantendo a filantropia como instrumento para o desenvolvimento e apoio a instituições, sem necessitar de aprovação societária ou governamental mais ampla, Flexner conseguiu propagar suas ideias. Com este fim, a fundação Carnegie investiu US$ 300 milhões entre 1910 e 1930. Para a época representava uma quantia extraordinária.
Isso tudo tornou a tarefa de Flexner muito menos problemática do que em outros países, como o Brasil, por exemplo. Flexner e outros reformadores, como Silva Mello, no Brasil, em seus estudos na Alemanha, "perceberam que o mundo estava mudando e sentiram que podiam prover a visão que tornaria suas respectivas nações alinhadas com as novas tendências". A suposta autopropagação e a originalidade das idéias de Flexner podem ter, portanto, diferentes interpretações. O que estava em jogo nesse embate e o que Flexner propunha era, na verdade, a reforma do sistema escolar como um todo, reforma essa que recebia o título mágico de universidade. É com este intuito e com esta visão que Flexner propôs o modelo alemão de educação médica e pesquisa para os Estados Unidos.
Cem anos depois, o modelo de ensino da medicina praticado nas universidades brasileiras é flexneriano, também chamado de modelo tradicional. O grande embate atual é a reformulação do currículo para um modelo focado na integralidade. Com o seminário "O Relatório Flexner cem anos depois e suas repercussões no ensino em saúde", a FCM pretende contribuir para a discussão desse tema e avançar nas propostas para a reformulação do currículo dos cursos de medicina.