23/03/2007
Muitas faculdades de Medicina fingem que estão ensinando"
O médico e cientista Ricardo Brentani faz coro à onda de críticas ao
Ministério da Educação por permitir o funcionamento e a abertura de cursos
de Medicina de qualidade duvidosa. Os médicos formados nessas escolas, diz
ele, colocam a saúde da população em risco.
"Quantas faculdades foram fechadas nos quatro anos deste governo por causa
do resultado ruim no Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes)?
Quantas escolas foram fechadas no governo anterior, que tinha o Provão
(antecessor do Enade)? De que adianta ter avaliação se um mau resultado não
leva a uma punição?", questiona Brentani, presidente do Hospital do Câncer
de São Paulo, um dos diretores da Fapesp (órgão do governo paulista que
financia pesquisas científicas) e professor da USP.
A campanha contra a abertura indiscriminada de cursos é liderada por
entidades como o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica
Brasileira (AMB) e o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp).
Diante da pressão, o MEC baixou, no início deste mês, uma portaria que deu
ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) a prerrogativa de se manifestar sobre a
abertura de cursos. No mesmo dia, porém, o MEC autorizou a abertura de mais
três cursos de Medicina no Estado de São Paulo.
Procurado pelo Estado, o Ministério da Educação afirmou que não se
manifestaria sobre as críticas dos médicos.
Para comprovar que não se aprende muito nas salas de aula de Medicina, o
Cremesp propôs uma prova aos alunos do último ano das faculdades de São
Paulo. Dos sextanistas que resolveram o exame no ano passado, 38% foram
reprovados. Esses médicos provavelmente estão hoje em hospitais e
consultórios.
No Hospital do Câncer, Brentani consegue manter a qualidade do atendimento.
Na unidade de terapia intensiva (UTI), por exemplo, todos os 18 médicos têm
doutorado. Fora de seu controle, a qualidade dos profissionais de postos de
saúde e outros hospitais tem repercussões - negativas - no trabalho do
Hospital do Câncer. "Metade das pessoas que nos procuram simplesmente não
tem câncer. Ou seja, um médico as encaminhou para cá acreditando que elas
tinham câncer. E também recebemos pessoas que ouviram de seus médicos que
elas não tinham câncer, mas na realidade tinham." Além de o MEC não
fiscalizar, segundo Brentani, muitas faculdades não têm interesse em
oferecer qualidade. "Com ou sem qualidade, os estudantes pagam, porque
querem ser médicos de qualquer jeito." Um exemplo disso é o fato de ele
próprio, dono de um currículo invejável, ter sido chamado uma única vez para
ser professor numa faculdade particular. E isso nos anos 60, quando ainda
era um médico com pouca experiência.
Foram reprovados na prova do Cremesp 38% dos alunos...
O número verdadeiro é maior que 38%. Como a prova não era obrigatória, quem
se apresentou foram os alunos que achavam que passariam. Os que achavam que
não passariam nem foram ao exame. Se todos tivessem feito a prova, o índice
de aprovação teria sido muito, muito menor.
O ensino médico é ruim? É muito ruim. As instalações das escolas não são
adequadas. Como se ensina histologia ou anatomia patológica sem microscópio?
Os professores também não são bons. Vemos nos jornais que há instituições
privadas que contratam doutores na véspera da avaliação federal e no dia
seguinte demitem todo mundo e põem gente menos qualificada no lugar, porque
sai mais barato. E metade das escolas médicas não tem nem sequer um
hospital-escola próprio. Como vão ensinar medicina assim? Elas fingem que
estão ensinando...
Por que as faculdades não se preocupam com a qualidade? A formação de
médicos virou business, virou negócio. Por isso temos essa multiplicação
desenfreada de escolas privadas. A maioria delas ainda não percebeu que
investir em qualidade dá dinheiro. Vamos sair da Medicina: você conhece
algum profissional formado na Fundação Getúlio Vargas que esteja
desempregado? Eu não conheço.
Como o sr. vê, na prática, essa formação ruim dos médicos? É simples: metade
das pessoas que procuram o Hospital do Câncer simplesmente não tem câncer.
Ou seja, um médico as encaminhou para cá acreditando que elas tinham câncer.
E também recebemos pessoas que ouviram de seus médicos que elas não tinham
câncer, mas na realidade tinham.
Isso tem a ver com formação ruim? Evidentemente que sim. O último dado que
conheço é que apenas 17 escolas médicas do País têm a oncologia como
disciplina na graduação. A conseqüência disso é que morre no Brasil mais
gente do que deveria.
O problema é a quantidade de faculdades de Medicina? Os governos são
tolerantes, ainda não entenderam que o diploma de curso superior não é um
bem de consumo disponível conforme a demanda. Não é porque você quer ser
médico, advogado ou geofísico que você tem o direito de ser médico, advogado
ou geofísico. Na Inglaterra, o governo determina o número de estudantes de
Medicina no país. Em Direito, a Ordem dos Advogados do Brasil conseguiu
legalizar o exame da ordem, ou seja, você só pode ser advogado se passar
nessa prova. O número de aprovados no exame da ordem é pequeno, assustador.
A maioria dos formandos é ruim. Eles, portanto, não podem ser advogados. De
que vale uma faculdade que não aprova seus alunos no exame da ordem? Dois
terços dos médicos brasileiros exercem a profissão sem ter feito residência.
É a mesma coisa: de que vale uma escola que não consegue aprovar nenhum
aluno num concurso de residência? Deveria haver um exame obrigatório também
na Medicina? O ideal seria que houvesse a fiscalização da qualidade do
ensino. Quantas faculdades foram fechadas nos quatro anos deste governo por
causa do resultado ruim no Enade (Exame Nacional de Desempenho de
Estudantes)? Quantas escolas foram fechadas no governo anterior, que tinha o
Provão (antecessor do Enade)? De que adianta haver avaliação se um mau
resultado não leva a uma punição? A sociedade precisa se mobilizar e cobrar
essa fiscalização. Não é justo que o estudante pague por um curso caro e não
tenha uma qualificação adequada.
O que o sr. pensa quando vê esses alunos? Eu tenho pena deles.