De cursos e formandos
Noticiam os jornais que foram avaliados pelo Ministério da Educação os cursos da área da saúde. Dentre os de Medicina, 25% classificaram-se nos níveis 1 e 2, em uma escala de 5 pontos.Ou seja: um em cada quatro médicos conclui os estudos em instituições “sem condições de funcionamento”, segundo o órgão oficial que as autoriza e fiscaliza.
Em uma estimativa “por baixo”, se em cada um dos 39 cursos “reprovados” formarem-se 50 médicos, teremos, anualmente, 1.950 novos profissionais despreparados atuando em clínicas, hospitais, consultórios, ambulatórios etc.
Funcionam 158 cursos de Medicina no País, sendo 88 privados e 70 públicos e gratuitos (leia-se: mantidos pelos contribuintes). Em 1994, havia 80 cursos médicos; nos últimos 12 anos, sob os governos do PSDB e do PT, o número quase dobrou, o que se deu com objetivos políticos e até mesmo contrariando pareceres do Conselho Nacional da Saúde.
O problema da expansão das matrículas nos cursos superiores tem sido debatido à exaustão. Argumenta-se que o número de estudantes universitários alcança, no Brasil, percentuais ínfimos em relação à população. De fato: nesse quesito, como em quase todos os relacionados com a educação, “lato sensu”, estamos muito aquém do que seria desejável. Mesmo deixando de lado Europa e Estados Unidos, se comparados com nossos vizinhos latino-americanos, México, Argentina e Colômbia ganham de nós de goleada.
Argumenta-se que esse atraso é histórico e remonta à proibição da existência de cursos superiores no Brasil, ditada pelo colonizador português. Com efeito: somente em 1808, D. João VI autorizou o funcionamento da Escola de Cirurgia da Bahia, embrião da nossa primeira Faculdade de Medicina. Enquanto isso, desde o século XVI, foram criadas universidades nas colônias espanholas.
Com 200 anos de existência, nosso ensino superior é deficiente. Há pouco, foram relacionadas por um órgão especializado as 200 melhores universidades do planeta, ocidentais e orientais. Dentre as latino-americanas, a melhor classificada é a Universidade do México, na 52ª posição; a única das brasileiras a figurar na lista é a Universidade de São Paulo, em 113º lugar.
A que se devem tão pífios quanto humilhantes resultados? Uma das explicações correntes os atribui à prevalência, entre nós, até meados do século XIX, do modelo de escolas isoladas, de cunho profissional. Em verdade, umas e outras podem funcionar bem, desde que comprometidas com a excelência do ensino. Lamentavelmente, tal requisito tem sido relegado ao esquecimento, o que tende a agravar-se com a pretensão de que a universidade deva converter-se em lugar onde se corrijam distorções e injustiças sociais.
Igualmente nociva é a velha cultura do cartorialismo, que atribui importância ao diploma em si mesmo. A valorização da forma em detrimento do conteúdo faz com que prosperem tantos cursos deficientes e caros, sem que seus usuários reclamem – porque o que desejam é tão somente receber o diploma, devidamente carimbado e registrado.
O que fazer com os formados nesses cursos reconhecidamente ruins? Exigir que complementem estudos em boas escolas? Submetê-los a exames suplementares? Fechar os cursos, impedindo que recebam mais alunos? Cobrar de seus dirigentes os prejuízos?
A propósito, vivi uma experiência singular, na década de 1970. No Conselho Federal de Educação, era recorrente o debate sobre a incapacidade do Estado brasileiro de assumir, sozinho, a criação de novos cursos e universidades, o que levou à expansão das instituições privadas de nível superior.
Momento decisivo era o reconhecimento formal dos cursos pelo Ministério da Educação, o que se fazia com base em parecer aprovado pelo Conselho. Sobre determinado curso de Direito, do Rio de Janeiro, em fase de reconhecimento, a comissão verificadora apontou sérias deficiências, sendo referendada pelo parecer do relator. Entrementes, foi suspensa a tramitação do processo, porque outro conselheiro pedira vista.
Nesse ínterim, fui ao Rio de Janeiro, para pesquisar no Arquivo Nacional. Quase em frente, na Praça da República, ficava a Faculdade de Direito em questão e resolvi visitá-la. Era um casarão velho, caindo aos pedaços; as portas do térreo estavam cerradas; uma escada de degraus carcomidos e malcheirosos levava ao andar superior. À jovem apressada que me atendeu, contei uma história, inventada à última hora: o curso de Direito aceitaria a transferência de minha sobrinha, que estava chegando do Piauí? “Vaga não é problema”, ela disse. Sobre os turnos de funcionamento, explicou: “Temos cinco turnos, ela pode escolher.” E acrescentou: “Cada turno é de três horas. Começamos às 8 da manhã e vamos até as 11 da noite, sem parar.” Deu-me alguns papéis para preencher, informou o valor da mensalidade e encerrou o assunto.
Fui conhecer as instalações: tudo sujo, malcuidado, paredes descascando. Um pardieiro. Em uma porta, uma placa indicava a biblioteca (fechada). Em outra, lia-se: “Laboratório”. Arrisquei uma olhada: no cômodo azulejado, privadas imundas, pias encardidas e um mictório.
Na reunião seguinte do Conselho, relatei o que vira. Seguiram-se acalorados debates; um dos representantes do Rio de Janeiro explicou que a faculdade estava prestes a concluir a sede definitiva, que atenderia a todos os requisitos pedagógicos. Perguntei se as vagas ilimitadas e os cinco turnos continuariam... Em absoluto! No novo prédio, a instituição seria modelar, até porque contava com renomados professores, dentre os quais magistrados, juízes e desembargadores.
Por maioria apertada, foi aprovado voto que suspendeu o julgamento do processo e determinou que uma segunda comissão verificadora analisasse, de forma mais acurada, o funcionamento do curso “sub judice”. Nesse meio tempo, meu mandato expirou e não pude acompanhar o desfecho do caso. Soube, por fontes outras, que o curso foi reconhecido e a faculdade transferiu-se para a nova sede. Algum tempo depois passei em frente ao prédio – de concreto aparente, moderno, envidraçado, deve valer alguns milhões, engordando o patrimônio da entidade mantenedora.
Em tempo: mais de 30 anos depois do episódio, em recente avaliação do MEC, o curso em epígrafe recebeu conceito 2.
Lena Castello Branco