17/08/2013
Flávio Dantas*
A regulamentação legal do exercício profissional da medicina no Brasil recebeu vetos presidenciais sobre aspectos relevantes que foram amplamente discutidos na longa tramitação do projeto no Congresso Nacional. Outros países, como a Espanha e a França, dispõem de uma legislação que ordena legalmente as diferentes profissões da saúde em norma geral mais ampla, definindo os papéis profissionais de cada profissão e pacificando as relações interprofissionais no campo da saúde.
Não foi este o caminho adotado pelo legislador pátrio, que preferiu, com raras exceções, normatizar a criação dos conselhos profissionais das várias categorias para depois regulamentar o seu exercício. O primeiro conselho criado foi o da Medicina (Decreto-lei 7.955/1945, revogado pela Lei 3.268/1957), seguido pelo de Farmácia (Lei nº 3.820/1960) e Odontologia (Lei nº 4.324/1964). Em sequência, com a única exceção da Medicina, foram legalmente regulamentados os exercícios profissionais de todas as demais treze categorias profissionais reconhecidas na área da saúde pelo Conselho Nacional de Saúde, sendo pioneira a Psicologia (Lei nº 4.119/1962), seguida da Medicina Veterinária (Decreto nº 64.704/1969) e Fisioterapia (Decreto-Lei nº 938/1969).
A Medicina é historicamente reconhecida como a fonte original de todos os outros campos de saber prático em saúde. A admissão de áreas-mães no campo da saúde está bem consignada nas legislações francesa e espanhola. Na França, o Código de Saúde Pública (Parte IV, artigos L4111-1, L4211-1 e títulos I a VII da seção III) define três áreas principais: a) profissões médicas (médicos, cirurgiões-dentistas e obstetrizes); b) profissões farmacêuticas e c) auxiliares médicos, aí incluídos os profissionais de enfermagem, nutrição, fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, entre outros. A Espanha, nos artigos 6º e 7º da Lei 44/2003, diferencia os licenciados (Medicina, Farmácia, Odontologia e Veterinária) dos diplomados (Enfermagem, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Podologia, Optometria, Fonoaudiologia e Nutrição Humana e Dietética).
Tal diferenciação legal tem raízes históricas, culturais e educacionais. São muito diferentes o tipo de formação e investimento educacional aplicáveis aos distintos profissionais da saúde. O Conselho Nacional de Educação estabeleceu, na resolução Nº 2/2007, cinco faixas de carga horária para integralização dos cursos de educação superior, variando de uma carga horária mínima de 2.400 horas até 7.200 horas, neste último caso incluindo de forma isolada a medicina, com um limite mínimo para integralização em seis anos. Os demais cursos da área da saúde oscilam entre o mínimo de 3.200 (Psicologia e Biomedicina) até 4.000 horas para integralização curricular num período de 4 a 5 anos.
Não é justo tratar igualmente os desiguais, nem desigualmente os iguais, tampouco há que se digladiar sobre superioridade ou inferioridade das diversas profissões de saúde. Todas são relevantes e necessárias, desde que exercidas de modo competente, ético e responsável. O processo de cuidado à saúde tem se tornado cada dia mais complexo, exigindo a cooperação de profissionais com capacitações específicas que devem atuar em equipe, de forma organizada, harmônica e coordenada. As Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação, definem as competências esperadas dos egressos, com claras diferenciações para os 14 cursos da área da saúde. Não há como negar - sem ferir o bom senso - a natural amplitude de habilidades, responsabilidade e autoridade do médico, decorrentes do seu longo e rigoroso processo de formação, como coordenador técnico em equipes de cuidados de saúde ou serviços médicos, respeitados os limites das competências, experiência e atribuições privativas, legalmente regulamentadas, dos demais membros da equipe.
As leis são regras gerais de direito, abstratas e permanentes, que obrigam determinadas condutas em função dos interesses sociais. Elaboradas pelos representantes do povo, como a que regulamentou a profissão médica, devem traduzir as aspirações coletivas. São elaboradas idealmente após demorada reflexão e interlocução com a sociedade, e tal como testes clínicos de novos medicamentos, são “experiências com o destino humano”. Assim como o planejamento de pesquisas clínicas em seres humanos, devem ser precedidas de cautela, meticulosa avaliação e previsão do seu impacto na sociedade, para maximizar ganhos e minimizar danos. Com o fim de instrumentalizar a justiça, respeitando o mérito, a capacidade e as necessidades dos cidadãos para promover harmonia e bem-estar social.
É bem conhecido, na sociologia das profissões, o processo de tentativa de monopolização de áreas específicas do conhecimento humano, pelas categorias profissionais organizadas em associações e conselhos, com finalidades econômicas e políticas. O longo processo de maturação da lei que dispõe sobre o exercício da Medicina no Brasil permitiu amplo debate sobre a redação final da norma legal, preenchendo a lacuna final no ordenamento jurídico brasileiro das profissões regulamentadas da saúde. Apresentada à sanção da Presidente da República, recebeu dez vetos, ou impugnações, por “contrariedade ao interesse público”, que provocam o necessário reexame do projeto pelo congresso brasileiro, à luz das razões que embasaram os vetos. Os vetos só podem ser rejeitados, em votação secreta, com maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em sessão que deve ser realizada até trinta dias após a comunicação ao Presidente do Senado, que foi feita no último dia 10 de julho.
O mais irrazoável dos vetos nega a formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica como atividade privativa do médico, sob o tendencioso argumento de que inviabilizaria a manutenção de ações preconizadas em protocolos e diretrizes clínicas estabelecidas no Sistema Único de Saúde (programas de prevenção e controle à malária, tuberculose, hanseníase e doenças sexualmente transmissíveis) e em rotinas e protocolos consagrados nos estabelecimentos privados de saúde, bem como a possibilidade de incorrer em elevado risco de judicialização da matéria. Ao colocar no limbo a questão da competência e limites do diagnóstico pelos outros profissionais da saúde, o veto agrega ainda mais incerteza jurídica e riscos de judicialização à questão da apuração de culpa dos profissionais de saúde não-médicos em ações de reparação de danos por tratamentos inadequados após diagnóstico incorreto, uma vez que não dispõem (exceto odontólogos) de autorização legal para requisição de exames complementares para a competente investigação diagnóstica. Pondo em risco a saúde dos cidadãos, particularmente daqueles mais vulneráveis ou usuários do SUS.
A amputação desta fundamental prerrogativa profissional não se sustenta, pois já existe permissão legal na Lei nº 7.498/1986 - que regulamenta o exercício da Enfermagem - de prescrição, na qualidade de integrante de equipe de saúde, de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde. Outro inciso do mesmo artigo, que definia tipos de diagnóstico que não são privativos dos médicos, também foi vetado. Entretanto, não houve veto à definição de diagnóstico nosológico, nem à prerrogativa do médico de determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico. É princípio no Direito que “quem pode o mais pode o menos”, e nunca o inverso. Mutatis mutandis, porque um profissional de saúde sem formação médica também não poderia fazer o prognóstico da doença, se este decorre do diagnóstico nosológico? Ora, porque fazer um prognóstico exige conhecimento médico, vivência e sensibilidade humana no acompanhamento dos pacientes, à beira do leito ou em seguimentos ambulatoriais, para fazer uma previsão responsável e competente da evolução de um determinado quadro clínico (devidamente diagnosticado) e comunicá-la adequadamente ao paciente ou familiares.
Há uma evidente contradição técnica no veto presidencial, que talvez seja melhor entendida, em tese, pela conveniência eleitoral de atender aos apelos de lideranças de determinadas profissões da saúde (na expectativa dos votos de seus filiados), e generalizada como contrária ao interesse público. O veto presidencial, portanto, poderia estar traduzindo um voto na confiança dos eleitores das demais categorias profissionais em saúde para mais um mandato nas próximas eleições. Pode ser um prognóstico enganoso, tanto do ponto de vista técnico como político. O artigo 13 do Código de Ética Médica considera como infração ética “deixar de esclarecer o paciente sobre as determinantes sociais, ambientais ou profissionais de sua doença”. Este esclarecimento impõe diagnosticar o doente com sua doença, numa perspectiva integral e sistêmica. É dever ético do médico informar o paciente e familiares das causas sociais ou ambientais de muitas doenças que afligem o cidadão brasileiro, tanto em áreas urbanas (violência, transportes públicos deficientes, poluição ambiental, educação de baixa qualidade, desemprego/subemprego, prestação jurisdicional lenta e pouco efetiva, que produzem estresse crônico) como rurais (condições inadequadas de moradia e saneamento básico, degradação ambiental), as quais contribuem para agravar a raiva e indignação geradas em muitos pela deslavada corrupção, desvios de recursos e impunidade dos poderosos em desfavor dos menos favorecidos. Ao cumprir o papel educacional que se espera de todo “doutor” (do latim docere, ensinar) e fazer um diagnóstico clínico integral – e eticamente íntegro – os médicos estarão dando exemplos de boa prática da Medicina, com foco adicional na promoção da saúde e prevenção de doenças. Só exige um pouco mais de tempo com o paciente. O médico, porém, é o senhor do seu tempo. Nesta hipótese, cumprido rigorosamente o Código de Ética Médica e conscientizada a população, a matemática eleitoral poderá se inverter. Ainda há muito a se fazer neste país, de forma ética e com boa fé. Para o bem dos cidadãos e da Nação Brasileira.
*Médico e Advogado. Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: dantasfla@gmail.com