Escolas Médicas do Brasil

A propósito da Medida Provisória n° 621 de 08 de julho de 2013 - Evandro Guimarães de Sousa e Flávio José Dantas de Oliveira

 23/07/2013

A propósito da Medida Provisória n° 621 de 08 de julho de 2013

“Tô vendo tudo, tô vendo tudo... “.

 

Todos nós ficamos perplexos com o teor da Medida Provisória n° 621/2013 que institui o Programa Mais Médicos com o fim de formar recursos humanos na área médica para o Sistema Único de Saúde. Parece que as autoridades da Educação e da Saúde que comandam os ministérios respectivos “surtaram” e querem que os médicos, atuais ou futuros, sejam forçados a engolir a droga paliativa e amarga que prescreveram para remediar a saúde do país.  Talvez tenham querido nos induzir a aceitar pacientemente o diagnóstico de Transtorno Bipolar de difícil prognóstico: breves minutos de euforia e anos de depressão!

 

Num momento de inusitada e profunda insatisfação popular com o governo, e agudo despencamento da popularidade da mandatária, foram autorizadas mais vagas para cursos de Medicina, acréscimo obrigatório de mais dois anos para os cursos de Medicina e a contratação de médicos formados no Brasil ou em instituições estrangeiras para o exercício da profissão em áreas carentes. Todas as medidas foram compactadas em uma medida provisória, ato unipessoal com força de lei do Presidente da República, que só pode ser editada com o pressuposto de relevância e urgência, e que deverá ser aprovada em momento posterior pelo Congresso Nacional. Num governo que se diz simpático à democracia participativa, o pacote legal foi entregue sem consulta preliminar à população, nem tampouco à Associação Brasileira de Educação Médica ou com as próprias universidades federais, as quais apenas foram convocadas posteriormente pelo Ministro da Educação para o adequado cumprimento das determinações governamentais. 

   

Se o diagnóstico num paciente é errado então o tratamento não surtirá o efeito desejado e poderá até ter um efeito paradoxal, contrário ao esperado, sendo o malfeito no caso de medidas de saúde pública ainda mais danoso, pois é coletivamente distribuído. Em tese, há até suspeitas de que o diagnóstico não tenha sido mal feito, mas intencionalmente deformado para permitir a adoção de tais medidas com fins supostamente eleitoreiros e para favorecimento de alguns, retirando o foco da incompetência do atual governo, comandado há mais de dez anos por um mesmo grupo, para atribuir a culpa das mazelas na saúde aos médicos.  A situação da saúde ficou tão urgente e aguda para que viesse a merecer uma medida provisória? Parece-nos que não, ainda mais quando se percebe que os efeitos do acréscimo de um ciclo obrigatório de dois anos somente serão conhecidos em 2021. Urgência? Sim, supostamente para ocultar a presumível traquinagem palaciana de arrumar um jeito legal para não deixar sem trabalho os filhos de políticos de partidos e movimentos aliados ao atual governo que, incapazes de serem aprovados nos vestibulares de nossas escolas médicas, foram estudar em Cuba e outros países da América Latina em que não existe vestibular. E querem se livrar agora, depois de concluído o curso, do outro vestibular que é o exame Revalida, administrado por órgão do próprio Ministério da Educação, que aprovou apenas 9% dos inscritos!!! Querem colocar a saúde dos cidadãos em risco com a admissão de tais graduados em medicina (só podem ser chamados de médicos os que foram registrados nos conselhos de medicina).

 

Com relação à ampliação do tempo de duração do curso de Medicina para 8 anos, deve-se levar em conta que esta medida é  inconstitucional. Segundo especialistas na área, esta determinação está em desacordo com a Constituição Federal, pois o único serviço civil ou social obrigatório nela previsto é o militar, sendo criado um constrangimento ilegal ao cidadão que quiser estudar medicina. Além de não estar baseada em qualquer estudo técnico que fundamente tão delirante extensão de carga horária no pressuposto de que se resolverão os problemas de saúde da população. Inconstitucional também por obrigar os alunos a trabalhar em locais incertos para obter o diploma, sem qualquer justificativa técnica, uma vez que não há provas cabais de que seja necessária a ampliação em 50% da duração mínima dos cursos de medicina no Brasil (atualmente 7.200 horas)  para aprimorar a formação, notadamente para servir de mão-de-obra barata e cobrir lacunas de pessoal médico no SUS, ainda mais numa área tão crítica como urgência e emergência, de dificílima supervisão in loco. As razões da falta de médicos no SUS estão na ausência de uma estrutura operacional que permita o exercício digno da medicina (o que implicaria em maior alocação de recursos financeiros e gestão competente da área de saúde) e de um plano de carreira para os médicos e outros profissionais de saúde que atuam no SUS, até hoje inexistente.  Tratar uma doença crônica com medidas paliativas sabidamente erradas, e orientadas para o quadro agudo da reprovação maciça no Revalida dos brasileiros que foram estudar  fora do país, é um exemplo de miopia institucional que precisaria de um sério tratamento oftalmológico... ou psiquiátrico.  

 

Além do mais, as Diretrizes Curriculares Nacionais de 2001, ainda não foram completamente implementadas em vários cursos de Medicina no Brasil. E de acordo com o disposto nesta Medida Provisória, o Conselho Nacional de Educação (CNE) já deve estabelecer normas para a adequação curricular destes cursos no sentido de contemplar o segundo ciclo, cujo objetivo é o treinamento em atenção básica, urgências e emergência no âmbito do SUS. Qual a fundamentação para tal medida? O CNE realizou estudos prévios sobre tal ampliação? Como se dará a supervisão dos bolsistas-alunos semi-escravos no atendimento de urgências e emergências? Talvez caiba ao cidadão acionar o sistema e-SIC (acesso à informação) para obter mais informações sobre a existência de tal tipo de estudo técnico, essencial para subsidiar decisão tão irracional, autoritária e desrespeitosa ao futuro profissional médico. É inadmissível aceitar esta ampliação para mais dois anos sem uma avaliação precisa da situação dos atuais 201 cursos de Medicina autorizados ou reconhecidos neste país.

 

A criação de mais 11.447 novas vagas em cursos de Medicina, também é preocupante. Haverá infraestrutura nos serviços de saúde para servir como cenário de prática para estes alunos? Docentes qualificados em número suficiente? Hospitais de ensino preparados para recebê-los? Equipes de avaliadores do Inep/MEC em número adequado para verificar todos estes novos cursos? É óbvio que não. Já se percebe uma flexibilização dos critérios para a autorização dos novos cursos de Medicina, pois na Portaria Normativa MEC n° 13/2013 já é permitido que hospitais com potencial de ensino (grifo nosso) possam servir de local para prática dos alunos. Portanto, a exigência da certificação de hospitais como unidade de ensino já não constitui um óbice para obter a autorização do funcionamento destes cursos. Exige-se, também, a existência de três programas de Residência Médica em áreas prioritárias. Entretanto,  o Edital 29/2013 já foi promulgado permitindo o financiamento de bolsas de estudos para Médicos Residentes de instituições públicas e de hospitais particulares sem fins lucrativos. Portanto, o Governo Federal já se antecipou no sentido de promover a fonte pagadora para o cumprimento deste item.

 

Já o projeto “Mais Médicos para o Brasil” prevê a contratação de médicos formados em instituições de ensino nacionais e estrangeiras por meio de intercâmbio médico internacional. Para o médico formado em faculdades estrangeiras, que deverá comprovar a habilitação para exercício da medicina no exterior, será dispensada a tradução juramentada do seu diploma e de outros documentos exigidos e será expedido um registro provisório pelos Conselhos Regionais de Medicina que permitirá o exercício profissional apenas nas atividades deste projeto. Além disto, estará dispensado da revalidação do diploma. O contrato terá uma duração de três anos prorrogável por igual período. Pergunta-se: Como será feita a supervisão dos profissionais estrangeiros, notadamente na área de urgência e emergência, onde o domínio pleno do idioma português é essencial? Como é obtida a habilitação de médicos estrangeiros formados em Cuba para que lá possam continuar e exercer a medicina, se assim o quiserem? Quem irá fiscalizar se tais habilitações foram legalmente obtidas? Importante aqui ressaltar que, no caso das inscrições para o projeto, o ministro da saúde já autorizou a Polícia Federal a proceder investigações sobre a autenticidade dos dados de vários candidatos, que supostamente estariam se inscrevendo apenas com a intenção de dificultar o processo de seleção.

 

A alegação do Governo para esta “importação” de médicos estrangeiros é de que há dificuldade na contratação de médicos formados no Brasil para trabalhar em regiões carentes.  Qual será a causa da dificuldade na contratação destes profissionais? É óbvio que há necessidade de infraestrutura necessária nestas unidades básicas de saúde, equipes multiprofissionais, exames complementares, medicamentos, etc. O médico brasileiro deseja um contrato de trabalho garantido para que possa exercer a sua profissão com segurança, um salário digno que lhe propicie a desejada qualidade de vida e um plano de carreira que assegure a sua progressão funcional. Não é uma questão de recusa para trabalhar nestes postos,  e sim garantias de emprego justo, à altura dos esforços empreendidos para se formar como médico. Uma vez cumpridas estas exigências, com certeza, haverá muitos médicos interessados. 

 

Tais medidas, em seu conjunto, representam uma fraude à saúde do país. Por que não é acionada a Polícia Federal e o Ministério Público Federal para investigar as reais razões de tais medidas, tomadas para refrear os ânimos da população insatisfeita? A composição “O meu país” de autoria de Orlando Tejo, Gilvan Chaves e Livardo Alves, gravada originalmente por Flávio José em 1994 e depois  por Zé Ramalho em 2000, descreve com muita propriedade a precária  situação da educação e da saúde básicas neste país cujo Governo Federal prefere destinar polpudas verbas para estádios de futebol:

 

Um país que seus índios discrimina E as ciências e as artes não respeita Um país que ainda morre de maleita Por atraso geral da medicina Um país onde escola não ensina E hospital não dispõe de raios-X Onde a gente dos morros é feliz Se tem água de chuva e luz do sol Pode ser o país do futebol Mas não é com certeza o meu país!

 

Realmente, não é este o Brasil que nós médicos, irmanados com a população brasileira, almejamos. E, contrariamente ao refrão irônico da composição acima, “Tô vendo tudo, tô vendo tudo... .mas fico calado, faz de conta que sou mudo”, a voz das ruas, dos usuários do SUS e dos médicos brasileiros, continuará cada vez mais ativa e não será silenciada, para o bem deste amado país.

 

 

Evandro Guimarães de Sousa e Flávio José Dantas de Oliveira

Professores-titulares do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia

 , evandrogsousa@gmail.com                                 dantasfla@gmail.com

 


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