29/07/2013
Nenhum vento é favorável para quem não sabe onde quer chegar...
Vencida a perplexidade inicial, e após a denúncia, cabem propostas alternativas que visem diretamente a melhoria dos cuidados de saúde prestados ao povo brasileiro. Há convergência no diagnóstico de que muito mais já poderia ter sido feito pela saúde do brasileiro, desde a criação do SUS, restando claro que há uma distribuição inadequada de profissionais de saúde (e não só de médicos) pelo território nacional, com prejuízo aos cidadãos que vivem mais afastados dos grandes centros urbanos e no interior deste imenso país.
Claro também está que o governo federal, que coordena as ações de saúde no país e dita as políticas públicas, gasta muito pouco em ações de saúde, porém obrigou os estados a gastar 12% de sua receita e os municípios a investir 15% em saúde (Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012), sem definir o percentual mínimo para a União. Há uma evidente assimetria e desequilíbrio entre os gastos do formulador das políticas nacionais de saúde com aqueles dos estados e municípios, sendo nítida a redução da participação do Ministério da Saúde no Orçamento da União desde 2000.
Tomemos como exemplo a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS, mencionada pela presidente na justificativa de veto de dois incisos da lei que dispõe sobre o exercício da medicina. Tal política, publicada em maio de 2006, a 5 meses da eleição presidencial, após merecer substancial apoio técnico de entidades médicas representativas da homeopatia e acupuntura, foi aprovada no Conselho Nacional de Saúde (CNS) com a exclusão da proposta de capacitação breve em acupuntura dos médicos atuantes na atenção básica e inclusão posterior, não-justificada tecnicamente, de uma nova área (termalismo social e crenoterapia) por influência do “grupo das águas” do CNS. Entretanto, deu-se uma pequeníssima inversão de recursos financeiros por parte do Governo Federal para implantar a política, tendo sido até mesmo eliminada no atual governo a existência de coordenação exclusiva para o setor na estrutura do Ministério da Saúde, deixando os investimentos para sua implementação por conta de estados e municípios. “Façam o que eu mando mas não o que eu faço”, parece ser o mantra do Ministério da Saúde em relação aos Estados e Municípios quando o tema é gastos em saúde.
O governo federal gasta pouco e mal na área de saúde. Uma primeira alternativa, política, consiste na aprovação de proposta que vincule, no mínimo, 10% da receita bruta da União para gastos em saúde, em adição aos 25% das receitas dos royalties do petróleo. Tal alternativa precisa ser imediatamente estudada e planejada pelo Executivo, para proposta da lei orçamentária de 2015, que deverá ser discutida e aprovada pelo Congresso Nacional no próximo ano. Ao lado de mais recursos, há que ser adequadamente planejada a gestão dos recursos, para que a mesma se dê de modo competente, impessoal, eficiente, transparente e republicano (em benefício da coisa pública). Os problemas que afligem a saúde pública no Brasil, agudos ou crônico-degenerativos, devem ser enfrentados, de forma razoável e proporcional, em distintos horizontes temporais, sempre tendo como fim a melhoria das condições de saúde (e de vida) do povo brasileiro.
A distribuição irregular de médicos no Brasil também ocorre no Canadá, com extensão territorial ainda maior que a nossa, que também conta com um serviço nacional de saúde, embora cada estado edite suas normas para admissão de médicos. No estado da Columbia Britânica, as normas para admissão de médicos estrangeiros impõem a apresentação de uma declaração do Colégio Real de Médicos (equivalente à AMB) de que cumprem os requisitos para registro pleno ou temporário. Obtido o registro temporário, poderá ser autorizado pelo Colégio para trabalhar com licença limitada, em área necessitada de médicos, por um período específico de tempo (um ano, renovável a cada ano até o máximo de três, mediante autorização do Colégio), sendo obrigatória a identificação da entidade supervisora e do médico que irá acompanhar o trabalho do médico estrangeiro. Após os três anos de experiência, caso queira continuar trabalhando, deverá ser aprovado nos dois exames do Conselho Médico do Canadá (equivalente ao CFM) e apresentar declaração do Colégio Real de Médicos. A preferência para contratação, sempre, é de médicos canadenses ou estrangeiros com visto de residência permanente no país, sendo obrigatória a ampla publicidade dos postos de trabalho disponíveis. Como se pode perceber, a participação das entidades médicas é fundamental no processo de admissão de médicos estrangeiros .
Prefeitos de vários municípios brasileiros (re)clamam por médicos fixos em suas cidades, e não é de hoje. Entretanto, não pretendem oferecer garantias de emprego estável, às vezes até para que o médico seja obrigado a atender seus próprios interesses pessoais, escusos em grande medida, sob pena de demissão sumária. Entre tais interesses podem ser citados, em tese, o atendimento prioritário a correligionários ou parentes, a emissão de atestados falsos e a atuação junto aos eleitores para favorecer determinados candidatos. Sem comentar a precária estrutura dos “postos de doença” (significativa parcela não merece ser chamada de posto de saúde), com ambiente físico insalubre, quase inexistência de material médico elementar e de assistência farmacêutica bem como de auxiliares para a adequada prestação de serviços à população.
Não há, portanto, condições de atração do médico (e sua família) para tais localidades, pois poderão estar correndo riscos de denúncias nos tribunais e no CRM (com pena de cassação do registro), além de riscos à própria vida em caso de insatisfação de pacientes e familiares com algum resultado negativo de sua atuação, não poucas vezes decorrente das suas péssimas condições de trabalho. Diante desta situação, quem se habilita? Idealismo tem limites, e o médico brasileiro não é milagreiro... muito menos santo para curar com as mãos e com a força da mente... e ainda menos mercenário, pois a esmagadora maioria é vocacionada e quer apenas e tão somente exercer com dignidade e segurança o seu nobre ofício.
Não basta, porém, ter o dinheiro para gastar em infraestrutura de saúde se não houver uma clara definição das estratégias e ações para melhorar, no longo prazo, a saúde pública no Brasil. Este caminho passa obrigatoriamente por médicos qualificados e suficientes para atender a população, amparados por uma carreira típica de Estado, que requer maior capacitação e responsabilidade. Na área médica, é pacífica a noção de que o ensino médico na graduação pode e deve ser melhorado, bastando que sejam efetivamente atendidas as competências e habilidades integrantes das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Medicina. O estágio curricular, com carga horária mínima de 2.520 horas em regime de internato, deveria ser supervisionado por docentes e incluir atividades práticas (80%) e teóricas (20%) no primeiro, segundo e terceiro níveis de atenção nas áreas de Clínica Médica, Cirurgia, Ginecologia-Obstetrícia, Pediatria e Saúde Coletiva. Entretanto, são deficientes as atividades de acompanhamento e avaliação dos cursos de medicina para a verificação da implementação destas diretrizes, em especial durante o internato, responsabilidade do próprio Ministério da Educação, que conta com um órgão como o INEP para realizar tal tarefa.
É notória entre educadores médicos, há mais de 50 anos, a necessidade de melhor capacitação dos estudantes de medicina na área da comunicação com pacientes e familiares e na compreensão da realidade biopsicossocial dos doentes, tendo sido introduzida uma disciplina específica para atender tal demanda, com resultados insignificantes de acordo com estudos científicos. Sem uma abordagem transversal, ao longo de todo o curso e por diferentes professores-modelo que também lecionem disciplinas clínicas e cirúrgicas, está fadada ao insucesso a tentativa de desenvolver habilidades e atitudes nestas áreas (bem como na área de ética médica) pelos alunos. Há também que se aprimorar o atual ensino da disciplina de Propedêutica / Semiologia Médica, que exige um grande número de experientes docentes para gerar as matrizes do raciocínio clínico e conduzir a aprendizagem dos alunos em pequenos grupos, e que parece estar sendo cada vez mais relegada a um papel secundário nos currículos das escolas médicas. Sem sólidas bases humanísticas e científicas não poderá ser edificada uma construção sólida para a medicina brasileira.
A oferta de vagas de Residência Médica para TODOS os graduandos em Medicina, em serviços credenciados e periodicamente avaliados pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), é outro requisito para uma saúde de melhor qualidade, o que demanda desde já um esforço coletivo para capacitar preceptores e estabelecer metas para alcance deste objetivo. Como componente curricular obrigatório dos programas de Residência Médica deveria ser incluído treinamento-em-serviço (mínimo de seis e máximo de doze meses), para desenvolver competências e habilidades essenciais (biomédicas e psicossociais) nas áreas de atenção primária em saúde a crianças, adultos, mulheres e idosos, sob supervisão de experientes preceptores. O ensino destas competências e habilidades não é prerrogativa de nenhuma das especialidades hoje reconhecidas no Brasil, e deveria ser ministrado, de modo integrado, por experientes docentes ou preceptores nas diversas áreas. Com uma remuneração justa para quem exerce a preceptoria.
A seleção dos docentes médicos e preceptores de residências médicas também merece ser repensada. Raramente os melhores professores de medicina são os mais destacados pesquisadores, há que se valorizar muito mais a experiência clínica, o perfil humanístico e o domínio de habilidades didáticas, em concursos honestamente realizados, para admissão de docentes em escolas médicas públicas. O mesmo se aplica à admissão de preceptores nas residências médicas. Por outro lado, o treinamento em urgência/emergência demanda alto nível de supervisão bem como exige maior agilidade de raciocínio e integração de conhecimentos, devendo ser dirigido para médicos vocacionados para a área em etapa complementar.
Caso venha a ser implementado o exame nacional de avaliação das competências e habilidades dos graduandos em medicina, os resultados obtidos pelos alunos poderão ser úteis tanto para a escolha do local onde realizarão a etapa de capacitação na atenção básica em saúde (poderá ser na sua cidade ou região de domicílio ou onde concluíram o curso de medicina) bem como para a seleção do programa de residência médica entre aqueles credenciados pela CNRM.
No curto prazo, há que se valorizar a ampliação e aprimoramento dos programas de saúde da família no Brasil, bem como na gestão inovadora dos mesmos em regiões com maior dificuldade de interiorização. Se há dificuldade em atrair médicos para regiões remotas do país, ou áreas periféricas e pouco seguras de grandes cidades, uma alternativa de transição poderia ser a contratação de grupos de agentes de saúde em localidades próximas que atuariam, num primeiro momento, em conjunto com o médico e enfermeiro que se deslocariam em dias pré-determinados para acompanhar o trabalho dos agentes e cuidar dos pacientes na localidade. E a instalação de unidades centrais de cuidados secundários geograficamente próximas aos locais de funcionamento destas equipes, devidamente aparelhadas e com profissionais indispensáveis de apoio como farmacêuticos, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos, entre outros, os quais deveriam atuar não só na prestação de cuidados especializados como no suporte educacional e técnico às ações desenvolvidas pelas equipes do programa de saúde da família. Sem esquecer da atualização e capacitação de todos os profissionais envolvidos, notadamente em cursos presenciais ou de educação à distância especialmente elaborados. Outra alternativa seria a reedição, em novo formato e desta feita para recém-graduados, dos centros rurais universitários de treinamento e ação comunitária (CRUTAC), experiência pioneira desenvolvida na década de 70 pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (breve relato histórico está disponível em www.recantodasletras.com.br/artigos/1140924).
Além de mais médicos, queremos melhores médicos. E mais e melhores profissionais da saúde (diplomados em cursos superiores ou não) para compor equipes de saúde e centros especializados de atenção secundária, sob a indiscutível liderança técnica do profissional médico. Com planos de carreira estruturados para todos, conferindo segurança legal e permitindo a projeção de crescimento profissional na área pública, além de adequadamente remunerados. Ao afirmar que “eu, com médico, me viro. Sem médico, eu não me viro”, a presidente deposita altíssimo nível de responsabilidade (ou talvez onipotência) no médico, mas se nega a definir uma carreira de Estado à altura, além de esquecer que saúde de qualidade pressupõe a participação de outros profissionais e de uma infraestrutura razoável, o que não é a realidade do SUS hoje. É direito do paciente usuário do SUS receber o melhor cuidado possível, prestado em condições aceitáveis por profissionais habilitados e competentes para o desempenho da atividade de saúde. Milagres são operados por santos, não por médicos ou outros profissionais da saúde, que conscientes de suas responsabilidades, clamam por melhorias no SUS que beneficiarão todos os cidadãos.
É preciso dar um basta à corrupção na saúde, e efetivamente punir os responsáveis por tais crimes no atacado contra os vulneráveis cidadãos brasileiros, que ainda acreditam que “SAÚDE é um Direito de TODOS e um Dever do ESTADO”. O altruísmo e respeito à coisa pública há de prevalecer nesta República Federativa do Brasil, contra interesses míopes, egoístas, manipuladores e imediatistas dos oportunistas e negociantes da saúde pública, restando certa a lição de que estaremos todos muito atentos para reagir contra medidas autoritárias, não-fundamentadas, rudimentares e apressadas na área de saúde, pobres de conteúdo e de espírito.
Flávio José Dantas de Oliveira e Evandro Guimarães de Sousa
Professores-titulares do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia