Escolas Médicas do Brasil

Muito além do juramento de Hipócrates - por Márcio Vaz Sanches

 03/08/2011

 

Muito além do juramento de Hipócrates

Márcio Vaz Sanches*

É cada vez mais freqüente a percepção por parte dos brasileiros de que o atual modelo de saúde vigente em nosso país privilegia a doença em detrimento da saúde. Trata-se de um assunto que merece ser discutido a partir de inúmeros pontos de vista, uma vez que evidencia o fato de a situação da saúde no Brasil seguir de mal a pior.

A prática cada vez mais constante das operadoras de saúde interferindo no ato médico vem tornando o exercício da medicina extremamente difícil. E quem vivencia esse cotidiano, seja profissional ou paciente, há muito percebe o quanto estamos caminhando rumo ao colapso.

A busca por "soluções" de redução de custo por parte daqueles que ditam as regras de mercado em nossa profissão está longe de atender ao objetivo maior da saúde, que é a sua promoção.

Tal resultado não passa certamente pela compensação de alguns por pedirem menos exames complementares, mas sim, por contribuírem para que tais exames sejam solicitados com base em critérios clínicos conscientes, realmente a fim de complementarem um diagnóstico que, em grande parte, jamais prescindirão de uma boa anamnese e de um exame físico minucioso do paciente, mesmo com todos os avanços tecnológicos.

A questão, portanto, deve passar pela reflexão sobre o porquê dos médicos hoje em dia solicitarem exames de maneira equivocada e indiscriminada.

A começar, e talvez sendo esta a maior de todas as causas, observamos um aumento espantoso do número de faculdades de medicina no Brasil concentrado na última década. Para se ter uma idéia da gravidade da situação, de 1996 para cá foram criadas 96 novas escolas de medicina. Até 1996, tínhamos 83 escolas, dentre as quais 51 públicas. Hoje, às 32 escolas particulares somaram-se mais 69.

Não bastasse o número impressionante de novas escolas criadas em tão pouco tempo, o controle sobre a capacidade técnica dos profissionais lançados no mercado pela grande maioria dessas escolas é inexistente. Os conselhos regionais de medicina, responsáveis por autorizarem o exercício da prática médica pelos egressos, atuam, como relatado anteriormente pelo médico e ex-ministro da saúde Adib Jatene, como verdadeiros cartórios, expedindo carteiras profissionais mediante a apresentação de diplomas.

Como um sem número de faculdades de medicina não dispõe de condições básicas para a formação adequada de futuros médicos, a saber, complexo médico hospitalar, ambulatorial e de emergência, com capacidade de receber e treinar internos e residentes, constituindo-se em referência regional de atendimento, o que se vê é um número considerável de jovens chegar ao mercado de trabalho com comprometimentos sérios de capacitação, habilidades e do desenvolvimento de compromissos éticos e sociais indispensáveis ao adequado e responsável exercício da profissão.

Como resultado, nos deparamos com uma massa de profissionais mal qualificados que, por também não terem acesso em seus cursos de graduação a matérias que estimulem neles o empreendedorismo e o desenvolvimento de uma cultura estratégica, indispensável na condução da vida de qualquer profissional, digladiam-se quase sempre nos grandes centros e nas principais capitais dos estados mais ricos. Formam, assim, uma farta mão-de-obra especializada a serviço das inúmeras operadoras de saúde e, com isso, forçam para baixo o valor dos honorários médicos. Um círculo vicioso, uma vez que identificamos em locais menos favorecidos, como as regiões norte e nordeste, cidades e localidades com extrema carência de médicos. Tal situação, por conseqüência, inclusive serve de estímulo político à criação de mais escolas médicas.

O que propor, então, como medida para solucionar essa grave situação? A resposta certamente não é fácil, muito menos está contida em apenas uma ou quiçá poucas ações. Alguns exemplos podem talvez servir como base para repensarmos nosso modelo atual de saúde, principalmente considerando a convivência salutar que pode advir da complementação da saúde pública pela privada.

Na Inglaterra, por exemplo, o médico é mais bem remunerado de acordo com indicadores de saúde da população que está sob sua supervisão e cuidado. Premia-se o profissional pela promoção de saúde, não pela doença!

Contudo, devemos ter claro que a solução dessa questão encontra-se presente na mudança de atitude dos vários setores da sociedade, tendo eles seus papéis muito bem definidos.

À sociedade cabe estar atenta e cobrar mudanças de fato na forma como a oferta de saúde é feita à população. Cabe eleger representantes no executivo e no legislativo para que representem e trabalhem por seus interesses e não pelo interesse de uma minoria que capitaliza a doença, nos fazendo adoecer cada dia mais.

Aos pacientes cabe conhecer melhor seus médicos, as operadoras de saúde e sua rede credenciada, a fim de serem capazes de separar o joio do trigo. Atualmente, isso vem se tornando cada vez mais possível pelo maior acesso a informações. Importa também questionarem e denunciarem o mau atendimento, as condições precárias de alguns ambientes de saúde. Cabe a eles ainda, participarem de discussões sadias em torno das políticas públicas, que nos afetam não só quando buscamos atendimento médico em um hospital ou policlínica, mas também nos inúmeros episódios de violência a que todos nós estamos sujeitos nos principais centros urbanos, fruto de baixos investimentos em educação e promoção de qualidade de vida à população.

Aos políticos e governantes, cabe rever a forma de se regular a saúde, repensar investimentos na saúde pública e impedir o desenfreado crescimento do número de escolas médicas devendo, inclusive, eliminar aquelas que contribuem para a formação de profissionais incapazes e despreparados.

Às entidades de classe (conselhos regionais e federal, associações médicas, sindicatos e sociedades de especialidades) cabe interferir de maneira mediadora na promoção da discussão de soluções para a redução de custos associados à saúde, contribuindo para a disseminação da ideia de que a prática de "medicina de ponta" necessariamente não passa pela aquisição de tecnologias de alto custo e acesso a exames sofisticados, mas sim pelos preceitos que norteiam a nossa profissão: a adequada coleta de informações através do diálogo com o paciente e do seu exame físico detalhado, que possibilita um diagnóstico preciso, na maioria das vezes, sem a necessidade de exames complementares.

Aos médicos cabe, como principais interessados no assunto, fazerem valer suas condições de educadores e promotores de saúde, devendo se organizar e se fazer ouvir no que tange à necessidade de terem, além de salários e honorários mais dignos, melhores condições de trabalho, além da preservação do direito de continuarem a exercer a profissão com isenção e autonomia, estando sempre comprometidos com o objeto de sua atenção, o ser humano.

*Médico e especialista em reumatologia formado pela UFRJ, com estágio na The Johns Hopkins Medical School, Baltimore, EUA. Pós-graduado em Marketing Estratégico pela ESPM-RJ. Sócio-diretor da empresa de consultoria Clinimkt, especializada em marketing estratégico para a saúde.

 

 


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