01/03/2008
Publicada em 01/03/2008 às 00h09m
Roberta Jansen - O Globo
RIO - Se hoje o sistema público de saúde segue sendo um dos maiores desafios enfrentados pelo Rio de Janeiro para prover um atendimento médico, sobretudo à população de baixa renda, a situação em 1808 era, para dizer o mínimo, catastrófica. Alçada do dia para noite à condição de sede da Coroa portuguesa, a cidade passou por algumas adaptações que, em sua maioria, visavam a atender os nobres e as classes mais abastadas. Mas mesmo isso era difícil num período em que a medicina engatinhava, a higiene era rudimentar e o saneamento básico, uma idéia ainda experimental. Como aponta um historiador, a limpeza da cidade era confiada aos urubus.
Leia artigo " A medicina e a saúde no município da Corte ", de Maria Rachel Fróes da Fonseca, pesquisadora de História da Ciência da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Surpreendentemente, o Rio estava livre da febre amarela que hoje volta a crescer no país. Uma grande epidemia da doença só iria eclodir na cidade bem mais tarde, em meados do século XIX. Mas isso não amenizava muito o quadro das enfermidades mais recorrentes.
- Os especialistas da época listam doenças de pele (que inclui milhares de coisas, de lepra a sarna, passando por infecções), doenças pulmonares (caso de tuberculose e pneumonia), doenças venéreas e diversas febres que chamavam de intermitentes, como a malária e outras viroses - enumera a historiadora da Casa de Oswaldo Cruz Lorelai Kury. - Entre as epidêmicas, além de algumas febres, havia a varíola e as gripes.
À época da chegada da Corte portuguesa, a população da cidade era estimada em cerca de 60 mil pessoas - em sua metade crianças. Desse total, 200 "praticavam a medicina". Isso significava, basicamente, como apontam os historiadores do período, que eram barbeiros. Essas figuras, além de fazer barba, cabelo e bigode, atuavam como dentistas e se dedicavam também à intervenção "médica" mais popular da época, a sangria, recomendada para tratar praticamente qualquer tipo de moléstia. Poucos eram os profissionais formados em medicina, em escolas no exterior. Vale lembrar que as primeiras faculdades médicas foram criadas no Brasil naquele ano, 1808, em Salvador e no Rio de Janeiro.
" A medicina da época não era eficaz e matava muito "
O número de médicos aumentou com a chegada da Corte e, nos anos seguintes, com a formação das primeiras turmas de profissionais no país. Entretanto, eles atendiam basicamente a elite - um terço da população era formada por escravos que praticamente não contavam com nenhum tipo de atendimento. Além disso, dada a precariedade da própria medicina, isso não era necessariamente positivo, como aponta Lorelai:
- Aumentou o número de médicos, mas se melhorou ou não a situação eu não sei. Talvez fosse melhor um curador ou um herborista porque os médicos faziam sangrias direto, usavam práticas intervencionistas e muito agressivas - afirma a historiadora. - Então não sei se era tão ruim assim ter pouco médico. A medicina da época não era eficaz e matava muito.
Entretanto, reconhece a historiadora, a maior presença de acadêmicos propiciou um aumento do número de instituições científicas e de estudos médicos, inclusive aqueles que buscam resgatar substâncias tradicionais da flora brasileira.
" A limpeza da cidade estava toda confiada aos urubus "
"Durante o percurso, parte do conteúdo desses tonéis, repleto de amônia e uréia, caía sobre a pele (dos escravos) e, com o passar do tempo, deixava listras brancas sobre suas peles negras. Por isso, esses escravos eram conhecidos como 'tigres'." O sistema de coleta de esgoto baseado no serviço braçal e insalubre dos "tigres" vigorou até 1860. E boa parte do esgoto era jogada em valas abertas, nas ruas. Nada muito diferente do que se vê até hoje em favelas e comunidades carentes.
Na época não se tinha conhecimento sobre formas de propagação de enfermidades. Na falta de alguma outra explicação para as doenças, especialistas culpavam o clima e os miasmas, as emanações provenientes de lixões e áreas de esgoto aberto, como revela o livro que está sendo reeditado pela Secretária de Cultura, "A saúde pública no Rio de D. João" (Ed. Senac). São dois textos da época, que traçam um panorama do clima e das principais enfermidades. Diante da falta de informação disponível no período, nota Scliar, que assina a introdução da obra, é de se espantar que os autores tivessem ao menos bom senso, o que parece faltar ainda hoje.