Escolas Médicas do Brasil

A culpa é do ensino médico - por Simon Schwartzman

 17/09/2008

  









 

  REVISTA - EDIÇÃO 119
A culpa é do ensino médio
Professor e estudioso da educação, Simon Schwartzman diz que o Brasil não vai incluir mais alunos no ensino superior enquanto não superar deficiências da educação de base

Patrícia Pereira
 

Schwartzman: avaliações pecam por não criar padrão de qualidade
Mestre em sociologia, Ph.D. em ciência polí­tica e atual diretor-presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), Simon Schwartzman não poupa críticas ao ensino superior brasileiro. Tanto público quanto privado. Foi reticente durante o lançamento do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), considera o ProUni uma "maluquice" e diz que a universidade pública não está preparada para receber alunos com base educacional fraca. No caso do setor particular, o educador acredita que a massificação do ensino está sujeita à perda de qualidade, mas não vê problemas na entrada de capital estrangeiro e ainda acha que as "butiques" estão tomando o lugar das públicas na preferência dos alunos.

Professor e pesquisador da FGV, ex-professor de ciência política na USP e na UFMG, Schwartzman trabalhou em universidades no exterior como pesquisador e professor, entre elas, no Departamento de Sociologia da Universidade de Harvard. No Brasil, foi relator, em 1985, da Comissão Nacional de Reformulação da Educação Superior Brasileira. Recentemente coordenou um estudo do Escritório da Unesco na América Latina (Orealc) sobre o futuro da educação na América Latina e no Caribe. Leia, a seguir, a entrevista concedida de seu escritório no Rio de Janeiro à revista Ensino Superior.

Ensino Superior - O senhor fez um estudo sobre o Enade no qual faz várias críticas à avaliação.
O Enade tem problemas metodológicos e de concepção também. Mas esse estudo foi feito logo que o Enade foi lançado. Não sei se, de lá para cá, alguma coisa mudou. Sei que um problema do Provão, e que continuou com o Enade, é o fato de fazer uma prova única. Com isso, todo mundo é meio forçado a seguir o mesmo modelo. E em algumas áreas se deveria poder ter orientações distintas. O modelo único coloca uma camisa-de-força no sistema.

Ensino Superior - O senhor menciona o problema da representatividade na amostra de alunos no Enade.
Isso é uma coisa que, para mim, nunca ficou clara. Do ponto de vista estatístico, do ponto de vista da eficiência do sistema, tanto faz ir à faculdade e aplicar uma prova a 30 alunos ou aplicar a todos eles. Se eu quisesse economizar, o melhor seria reduzir o número de faculdades a visitar.

Ensino Superior - Outro ponto do Enade questionado está ligado ao mé­todo estatístico. Há dúvidas se o tes­te obedeceu a escalas absolutas ou relativas. Qual é a falha que o senhor aponta no método estatístico usado pelo MEC e como isso pode comprometer o resultado?
Esse é um problema que havia no Provão e que continua havendo, que é o seguinte: se eu pego todas as faculdades de medicina, posso dizer 'esta está muito bem, esta está no meio e esta lá embaixo'. Mas qual seria um mínimo necessário de pontos a ser alcançado? É preciso, na verdade, ter uma referência externa para dizer que abaixo disso é inaceitável. E isso não existe. Ninguém teve coragem ainda de fazer. Nem o Ministério da Educação de antes e nem o de agora. Porque essa medida fecharia muitas instituições. Não se exige um mínimo de qualidade, só se compara. A única coisa que eles fazem é criar uma hierarquia.

Ensino Superior - Qual a sua avaliação da qualidade do ensino su­­perior no Brasil hoje? Estamos evo­luindo ou regredindo?
Não temos muitos dados para falar sobre isso. Exatamente porque essas avaliações não dão um padrão de qualidade, elas fazem as comparações dentro de cada curso. Acredito que temos segmentos de muito boa qualidade, mas que são poucos. Esses segmentos são bons e alguns deles podem estar melhorando. Mas, na média, acho que o sistema está tendendo a se massificar e a perder qualidade. Eu diria que o setor de qualidade é pequeno e o setor mais aplicado, mais técnico, que seria uma solução, não está se desenvolvendo porque todo mundo quer imitar o modelo das tradicionais.

Ensino Superior - A entrada de capital estrangeiro no ensino supe­rior brasileiro é uma alternativa pa­ra capitalizar as instituições ou é prejudicial à educação?
Eu não vejo mal, e acredito que nunca será algo muito grande [participação majoritária]. Hoje em dia isso é comum em todas as partes do mundo. O Chile, um país que abriu muito mais do que o Brasil, deve ter três universidades que são ligadas a grupos internacionais. E esses grupos só querem vender um bom produto, um bom curso, não trazem nenhum dano.

Ensino Superior - O senhor concorda com a proposta da Reforma Universitária, que prevê restrição de 30% na participação de capital externo no ensino?
Eu não vejo razão. Tem-se essa xenofobia, esse medo do estrangeiro, mas é uma ideologia meio maluca de que eles vão tomar conta da nossa cultura. Eu acho isso uma bobagem. Essas universidades do Chile são muito melhores do que a média das particulares. O capital estrangeiro pode trazer novos modelos, experiências de outros países, pode melhorar a eficiência.

Ensino Superior - Recentemente, algumas instituições de ensino fecharam por problemas financeiros. A que isso se deve? Ao amadurecimento do setor, que vai naturalmente encolher, ou unicamente à má gestão?
Tem um problema aí que é o seguinte: o sistema privado cresceu muito, com uma expectativa de que atrairia muitos alunos que poderiam pagar, mas não tem tanto aluno chegando. E o sistema público, atualmente, vem absorvendo alunos - com cursos noturnos, com cursos que são muito fáceis de entrar. Na universidade pública, difíceis são apenas cursos de algumas áreas.

Por exemplo: quem quiser fazer Geografia vai conseguir entrar. Nos sistemas estaduais, quase todas as universidades têm cursos noturnos. O sistema federal ainda tem poucos, mas está começando a abrir também. Então vejamos, por que o aluno vai pagar uma escola particular se ele pode cursar de graça na pública? Com isso, o setor privado está perdendo espaço. Também está ocorrendo uma outra coisa que acho muito interessante. O setor privado está começando a se transformar. Há alguns tipos específicos de instituições. Um deles é a grande instituição, que tem um ensino de massa, barato. Elas são muito grandes, têm muitas filiais, podem fazer acordos. Essas ganham no volume.

Ensino Superior - É possível massificar o ensino sem perder a qualidade?
É claro que essas instituições perdem em qualidade. Há tentativas de reverter isso, mas é óbvio que estudar em uma butique é muito melhor do que estudar em uma loja massificada. Algumas faculdades particulares seguem o caminho de criar suas "butiques": com salas pequenas, poucos alunos, maior contato com os professores, que são de tempo integral, mas caríssimas. E os alunos de classes mais altas já estão preferindo essas universidades às públicas. Em áreas como Direito, Administração - em especial em áreas ligadas a negócios - as universidades privadas estão ocupando um espaço muito importante.

Ensino Superior - Uma pesquisa recente da CNI/Ibope aponta que 70% dos entrevistados consideram a educação superior particular ótima, contra 55% para o ensino público. A imagem das instituições particulares está mudando?
Isso eu não sabia. Os dois sistemas são muito desiguais. Tanto o público quanto o privado têm coisas boas e ruins.

Tradicionalmente, o sistema público é bem melhor. Para o sistema privado se dirigiam as pessoas que não conseguiam entrar no público. Mas isso está mudando. Como mudou, há 20 anos, em relação ao ensino médio.

Ensino Superior - E por que, no caso do ensino superior, isso está mudando agora?
As questões de quantidade e de acesso passaram a ser a prioridade número um e quase única do governo. Além do mais, as universidades públicas funcionam mal: não têm capacidade de decisão, passam por greves, usam dinheiro de maneira ineficiente. Com isso, foram se transformando em instituições muito grandes, muito ineficientes e com um alunado que vem de uma população mais pobre e menos formada. O aluno que tem dinheiro, que teve uma boa educação secundária, pode pagar e prefere ir estudar em uma "butique".

Ensino Superior - E antes a "butique" era a universidade pública?
Eram as públicas que faziam isso.

Ensino Superior - Por que a univer­sidade pública vem perdendo credibilidade?
Como disse antes, as questões de acesso estão predominando sobre as questões de qualidade. Por exemplo, o governo criou um programa para repassar dinheiro às universidades que aumentassem o número de alunos em cursos noturnos [Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - Reuni]. Existem também as políticas de cotas. O Senado votou uma política para reservar 50% das vagas aos alunos de escolas públicas. Há todo um movimento para que o setor público absorva os alunos com condições sociais mais baixas. O que, do ponto de vista da eqüidade social, é interessante, dá-se oportunidade para pessoas que não tinham acesso. Mas quando se faz isso sem tomar outras medidas que deveriam estar associadas, surge o problema de sobrecarregar as universidades. Elas não vão conseguir fazer um bom trabalho, elas não sabem lidar com esses alunos. Nas boas faculdades, os alunos chegam quase prontos. Há vestibulares terríveis, é uma seleção enorme. Diferente é colocar alunos que vêm de escolas públicas de baixa qualidade, de famílias que não tiveram uma boa educação.

Coloca esse pessoal na universidade, com esses professores. Vai ocorrer o quê? Vão reprovar todo mundo no primeiro ou segundo ano. Quando se quer dar uma educação continuada, de nível superior, para pessoas que não têm uma boa formação anterior - e alguns têm que trabalhar, são mais velhos, enfim, enfrentam uma série de condições adversas -, é preciso criar cursos adequados a esse público. Cursos mais curtos, com uma formação mais aplicada. E isso não está sendo feito.

Ensino Superior - Então, qual seria o caminho para resolver a dificuldade de acesso à graduação? O senhor acha pos­sível atingir a meta de incluir 30% da população de 18 a 24 anos no ensino superior?
Nós não temos problemas de falta de acesso. O problema é que os cursos não têm candidatos. O número de pessoas que se forma por ano no ensino médio é mais ou menos igual ao número de vagas que o ensino superior tem hoje. Temos muito mais candidatos nos vestibulares porque existem as pessoas que se formaram há mais tempo. O setor privado não tem problema de vaga, são mais vagas do que candidatos. E, no setor público, só há falta de vagas nos cursos de maior prestígio, que são os mais disputados. O problema é que o número de pessoas que se forma no ensino médio está muito baixo. Da turma que chega aos 18, 19 anos de idade, nem metade completa o ensino médio. Não se tem massa de gente chegando à universidade. O problema não é de vaga, o problema é que o ensino médio é muito ruim: não cresce, reprova em grande número, é de péssima qualidade. Não adianta adotar uma política de ação afirmativa. Não tem gente entrando. E os alunos que entram não têm condições de fazer cursos muito exigentes.

Ensino Superior - Segundo matéria publicada na Folha de S. Paulo, quase 40% das vagas do ProUni para o segundo semestre deste ano não serão preenchidas porque os alunos não atendem aos pré-requisitos (Enem e renda). As regras do programa deveriam ser flexibilizadas?
Eu acho uma maluquice fazer esse tipo de programa de inclusão a ferro e fogo. A concepção está toda errada. O problema da educação brasileira não é botar aluno na universidade. O problema é melhorar a qualidade do ensino médio e do ensino básico. E criar, para quem quiser continuar os estudos depois do ensino médio, cursos adequados para os perfis das pessoas que se tem. Temos investido muito pouco nesta direção. Os nossos cursos são todos de formato muito ambicioso.

Ensino Superior - Seria um caminho parecido com o que seguem os cursos tecnólogos?
A idéia dos tecnólogos é mais adequada. Mas as pessoas ainda não querem esses cursos, acham que não vale a pena, que é algo sem muito prestígio. Os Estados Unidos, por exemplo, têm o sistema de college de dois anos e de quatro anos. Lá, pode-se estudar qualquer coisa: matemática, física, marcenaria, corte e costura ou cozinha. São vários níveis, várias possibilidades e caminhos que as pessoas podem seguir. Não há um caminho único. No Brasil não se tem isso. Os europeus estão desenvolvendo o processo de Bolonha. São três anos iniciais, feito o college americano, em que o aluno completa sua formação geral ou escolhe fazer um curso especializado, profissional, mais técnico. Depois desses três anos iniciais, ele já tem o diploma. Se quiser continuar estudando, pode fazer um mestrado profissional de um ano ou no máximo dois.

Ensino Superior - Por que o Bra­sil não importa esse modelo mais flexibilizado?
Eu acho que está havendo uma tentativa de fazer isso.

Ensino Superior - No setor privado ou no setor público?
Sobretudo no setor público. Não sei dizer muito bem, mas foi criada uma universidade no ABC [UFABC], em que estão tentando implantar o modelo de Bolonha. Sei também que na Bahia há experiências nessa direção. Não sei avaliar se é boa, se está dando certo ou se não está, mas as condições são boas. Eu lembro que participei de uma reunião em Campinas falando desse assunto e o pessoal reagiu muito mal. Os engenheiros, por exemplo, criticam: 'como é que se vai destruir o curso de engenharia de cinco anos, deixar o aluno passar três anos em um curso geral e depois fazer engenharia em dois? Não, Deus me livre'. Ainda há muita resistência, sobretudo das profissões tradicionais. Mas, se não podemos massificar o ensino superior, temos de diferenciá-lo. O sistema tradicional de ensino superior é um sistema de elite, pequenininho, fechadinho, para pouca gente.

Ensino Superior - O senhor fala em crescer sem perder a qualidade?
Não é perder a qualidade, é diversificar, fazer coisas diferentes. Tem de haver um sistema que possa pegar o aluno desprovido de uma boa formação, mas que quer continuar estudando, e dar a ele um tipo de formação que pode ser boa. Ele pode ser um bom mecânico, ou ele pode ser um bom especialista de vidros. Ele pode fazer uma porção de coisas e bem feito. E o outro, mais bem preparado, vai fazer Física, vai fazer Matemática e vai para a Engenharia. É difícil, mas temos de começar a pensar que não é uma hierarquia de qualidade, são opções, alternativas. E aí entra o problema desses tipos de exames como o Provão e o Enade. Quando se tem uma prova única, todas as escolas têm de ser iguais às melhores. Restringe-se a possibilidade de surgirem faculdades com um bom ensino, só que mais restrito quanto ao campo, ao tema, ao tipo de formação. Essa poderia ser uma opção legítima.


TAGS